As torcidas estavam tão dispostas a simplesmente se divertir que a do Vasco era chefiada por uma pacata dona de casa, Dulce Rosalina, e a do Flamengo por um certo Jaime de Carvalho e sua charanga de marchinhas. Na edição após o jogo final, O GLOBO registrou não ter havido atendimentos especiais no posto médico ou nas delegacias. O atacante Valdemar, do Vasco, foi caminhando até São Januário, ainda com o uniforme do jogo, enquanto recebia nas ruas os aplausos dos vascaínos e o silêncio civilizado dos rubro-negros.
Nunca houve um campeonato como aquele, e estiveram em campo, como se fosse um jogo da Champions League de hoje, craques como Joel, Moacir e Dida, pelo Flamengo, Vavá, Bellini e Orlando, pelo Vasco, Didi, Garrincha, Zagalo e Nilton Santos, pelo Botafogo, Zózimo, pelo Bangu, e Castilho, pelo Fluminense, todos recém-campeões do mundo na Suécia. Os coadjuvantes eram Telê, do Fluminense, futuro técnico da seleção brasileira; o temperamental Almir Pernambuquinho (também chamado “Divino delinquente”), do Vasco, que morreria assassinado num tiroteio na Galeria Alaska, em Copacabana; Pompeia, o goleiro das pontes espetaculares, no América; ou o diminuto Babá, 1,54m, na ponta esquerda do Flamengo. Outras estrelas: Valdo, Altair e Jair Marinho, no Fluminense; Paulinho Valentim e Quarentinha, no Botafogo; Jadir e Dequinha, no Flamengo; e Sabará e Pinga, no Vasco.
Talentos aos montes, finalmente uma geração vitoriosa. Num daqueles jogos do campeonato carioca de 1958, o Flamengo meteu 8 a 0 no Olaria, e Nelson Rodrigues, na “Manchete Esportiva”, escolheu Dida, autor de seis gols, como destaque da seção “Meu personagem da semana”. Lembrou no texto que Leônidas da Silva, o Diamante Negro, a maior glória do futebol até então, chamara o atacante de perna de pau:
“Qualquer paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade. Perguntem a uma zebra do Jardim Zoológico: Dida é um perna de pau?’, e a zebra responderá com uma ênfase tremenda: absolutamente! absolutamente!’ Leônidas, craque do passado, quer ser ainda o maior. Sofre com os diamantes negros’ ou brancos’ ou morenos’ da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por isso, meteu o pau em Dida. Era como se dissesse: Ah, os meus tempos!'”
Foi um ano vascaíno. O clube começou a temporada em fevereiro vencendo o Torneio Rio-São Paulo, e olhe que um dos participantes era o Santos, com Zito, Dorval, Jair da Rosa Pinto, Pagão, Pelé e Pepe — e olhe ainda que um dos jogos desse torneio terminou com esse ataque fabuloso cravando 7 a 6 sobre o Palmeiras. Depois veio a vitória no Torneio Início que, como o nome diz, abria o Campeonato Carioca. Num só dia reuniam-se no Maracanã, a partir do meio-dia, todos os clubes (eram 12, além dos grandes, os pequenos São Cristóvão, América, Bonsucesso, Olaria, Madureira, Canto do Rio, Bangu e Portuguesa). Disputava-se um mata-mata com partidas de 20 minutos e, se terminadas empatadas, decididas nos pênaltis (o caso de 1958, com toda a série de cinco penalidades batida por um único jogador) ou na exótica contabilidade do número de escanteios (até o início da década de 1950).
Quando começou o Campeonato Carioca, o Vasco disparou na frente, mesmo sem seu maior goleador, Vavá, o “Peito de Aço”, que no final de agosto foi negociado com o Atlético de Madrid (outro campeão do mundo que saiu do Rio logo após os primeiros jogos do estadual foi Joel, do Flamengo, vendido para o Valencia). Os demais craques da seleção continuaram por aqui, e pode-se ver os duelos de Garrincha contra seus infelizes marcadores: o rubro-negro Jordan, que se orgulhava de não bater nem segurar a camisa de Mané, e o vascaíno Coronel, um lateral sem essas preocupações de interessados em ganhar o Belford Duarte (o prêmio ao jogador menos faltoso da temporada). Ficou também no Rio o goleiro Castilho e sua “leiteria”, nome que na época dava-se a pessoas de muita sorte. A propósito, os goleiros de 1958 também jogavam sem luvas.
TÍTULO COM O EMPATE EM 1 A 1
Foi há exatos 60 anos, no mais sensacional dos campeonatos cariocas, no tempo em que o juiz atuava assessorado por apenas dois bandeirinhas. Às vésperas dos jogos, eles eram escolhidos em comum acordo pelos próprios clubes, sendo que estavam à disposição nomes como Antonio Viug, Gualter Gama de Castro, Alberto da Gama Malcher e Airton Vieira de Morais, o popular Sansão, apelido que sua senhoria recebeu ao vencer um concurso nacional de queda de braço. A final foi dirigida por Eunápio de Queirós e, como memória dela, há também um áudio no YouTube. Nele, o locutor Waldir Amaral, da Rádio Continental (“ontem, hoje e sempre, a casa da notícia”), narra o gol de Roberto Pinto que abriu o placar da partida (dizia-se “match”) e, mesmo com o gol de Babá no segundo tempo, permitiu o título ao Vasco. A Taça Eficiência, dada ao clube que alcançasse mais pontos na somatória dos campeonatos profissionais, aspirantes e juvenis também ficou com o Almirante, que era como O GLOBO, por causa da caravela no escudo, chamava o campeão.
Na véspera do jogo, o jornal teve acesso à concentração dos dois times. Na do Vasco, fotografou o momento em que Almir “Pernambuquinho” tenta dar um susto em Pinga mostrando-lhe uma cobra, mas fracassa porque o ponta-esquerda percebe antes que ela já estava morta. No Flamengo, uma legenda brinca com a foto premonitória do zagueiro Pavão segurando um abacaxi — e não deu outra.
Num jogo sensacional (“Obrigado, futebol”, escreveu Ricardo Serran, que fez a crônica do jogo para O GLOBO), o “Gigante da Colina”, outro epíteto para identificar o esquadrão de São Januário, levou o título com direito à imediata colocação das faixas. Na foto clássica do time, os jogadores do ataque aparecem agachados, de cócoras, uma formação hoje abolida pela necessidade de todos ficarem ligeiramente erguidos e permitir que os fotógrafos registrem na camisa a marca do novo craque, o patrocinador.
Fonte: O Globo